domingo, maio 20, 2007

Um Pouco de Infância e Alguns Ventos – II


A cidade era pequena, mas o verão se vestia de grande. Desconhecida, nem violência escutara seu nome. O colégio, generoso, tinha amizade boa com surpresa, mais do que com o próprio ensino. É você o menino que escreve?

Os olhos em tropeço, recusando o desafio dos olhos dela, dedos apertando os livros para se livrar das mãos. O pátio em ventania de recreio salvava o silêncio. Ele não acreditava. Ela tinha curiosidade. A notícia das redações de classe tinha chegado à Quarta série.

No início, a poesia fazia o assunto da amizade, depois, a amizade se lambuzava pelos corredores e mal cabia em poesia. Descobriram que eram vizinhos de rua, bastavam duas quadras. Em pouco tempo, viraram também vizinhos de alguma outra coisa intima deles. Mas disso ninguém sabia.

Nas férias, as tardes levavam as crianças pra brincar e depois, exaustas, adormeciam em baixo da noite. O dia não era vigiado pelo relógio, por isso não tinha pressa de ir embora. Ele gostava da praça da Igreja, no alto. Dava pra ver a casa dela. Escrevia-lhe em bilhetes os sorrisos recém-nascidos pela manhã, mãos dos guris serviam correios. Ponderava a brincadeira e paixão, um olho na pipa, o outro ansioso investigava as pistas das respostas, os méritos e aparições. Daí, chegavam poemas em abraços, versos-olhos soprados nas beiradas das ruas – bem pequenos pra que ninguém notasse, - ao escurecer, telefonemas. E as paisagens exclusivamente femininas, ilustradas atrás da voz da ligação. O resto do mundo quase não fazia diferença.

Antes do sono, costurava com lápis acontecimentos na cabeceira. Reeditava episódios, imenso dele mesmo, formatava em letras rabiscadas, trancava tudo no quarto. Mãe insistia na janta. Cauteloso, carregava trechos no bolso, as palavras na ponta da língua. Quando a retribuição vinha forte, encorajava a mão direita a cantar a dela. A esquerda, com medo, se encolhia em aviso. Incerto, corria para longe de si mesmo, mas deixava os ouvidos fazendo companhia. Ela achava que ele fechava os olhos pra imaginar. Criaram o talento de ir para mundos irreais, às vezes, mesmo sem notar, faziam um pouco de esforço e iam. E ninguém era capaz de trazê-los. O tempo, rendido, esperava.

Por alguns anos, ele mesmo esboçou uma eternidade com as letras. No quarto, esboçou as histórias, as ruas, as esquinas. Até que finalmente deixou borrar toda sua obra-prima em lágrimas, quando desiludiram sua inspiração. A família dela ia pra cidade maior, restavam as férias como despedida. Pousou duas fitas que abanavam os cabelos em suas mãos. Eu volto, desejou. E foi de vez, do lugar escondido pela própria geografia. As fitas eram pra não esquecer dela.

O quarto engasgado. O colégio esvaziando de gente, a cidade silenciando seu nome, e os vestígios dela sendo pouco a pouco arrastados pelos ventos nos lugares prediletos. Só não arrastaram os recados gravados em caneta vermelha acenando no caderno. As mensagens nas nuvens zombando distâncias, as fitas descolorindo na prateleira do quarto, e os telefonemas ocasionais, moinhos de ausências. Você lembra que eu te chamava de meu poeta? Eles nunca puderam confessar que se amavam.


Fernando Palma, Dezembro de 2007

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sábado, maio 12, 2007

Baseado em Personagens Reais - I


Há anos ela está escondida nela mesma. Como quem estivesse vestindo agasalhos, um por cima do outro. E óculos de sol, chapéu, calças, luvas, capas de chuva até os pés, botas acovardando as canelas. Ela mal pode ser vista. O tempo corre em volta dela, e seus gestos e expressões presos na muralha já não a traduzem como antes, apenas avisam que há alguém ali. As vezes, eu a provocava com histórias antigas, tentando lhe arrancar pra fora, mas respondia com um personagem tão estranho no olhar que me fazia sorrir de medo. Então, mantenho esse meu eterno papel amigo-paterno de desvendá-la mesmo sem ser este o meu papel. Aperto os olhos, forço poder de ver atrás dos casacos, das mascaras acostumadas, luvas de frio-psicológico, capas pretas. Melhor, escuras. O corpo preso, colado, acomodado ao meio, a visão se confundindo nas lentes opacas. Ninguém nem lembra mais a cor de seus olhos. Ela está escondida em si há tanto tempo, que há quem pense que é uma pessoa infeliz. Mas não é. Está apenas afastada da felicidade por um tempo, de férias. Economizando. Guardando o melhor dela mesma, e observando atenta, e esperando, preparando, ansiosa, determinada. Uma determinação tristemente incrível. Ela está escondida em si, e aguarda por uma oportunidade, um sonho, um lugar, um momento. Um alguma-coisa-que-acontecerá que ela sabe que tem direito, mesmo sem saber o que. Um alguém, mesmo sem saber quem é.

Fernando Palma, Maio de 2007 

Ps: Participação - correções e critica - da querida amiga Deniela Bridges.

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domingo, maio 06, 2007

Cotidiano - I


http://populo.weblog.com.pt/arquivo/casa1024.jpg

Acordou as nove, mas não olhou que horas eram. Vestiu o agasalho estendido na cadeira, nem fazia frio. Fez café sabendo que não iria tomá-lo, ninguém iria tomá-lo. Apenas fez.


Correu a casa verificando o silêncio, uma paz indesejada, cumprimentou as paisagens que pulavam pelas janelas.


Saiu à praça para encontrar com algumas árvores, vigiava as folhas e os sapatos das pessoas, atravessava o tempo com a imaginação. Caminhou pela calçada, passou pelo o lago, passou pelo o lago, caminhou pela calçada. O quarteirão de tão pequeno parecia sufocá-lo.



Os vizinhos roubavam-lhe de sua privacidade. Atrapalhavam sua tristeza. Permaneceu incolor, atrás dos óculos. Tropeçava em vozes, editava histórias que escutava nas esquinas. Aquele lugar é próprio à história alheia.


O vento o ajudava a caminhar, seguia com pouca pressa. Nem se preocupou em olhar para os dois lados ao atravessar a rua. O mundo só atropela o que está em evidência.


Visitou bares e copos de cerveja. Tomava uma garrafa a cada parada, exatamente uma garrafa, nada mais consumia. Voltou pelo mesmo trajeto, pouco antes das seis. Não conseguiria suportar o peso da noite.


Deixou o portão entreaberto, a espera de ventos.


Preparou o jantar, comeu apenas o suficiente, dispensou o banho. Deitou no sofá para escapar da cama vazia. Adormeceu antes que o próprio sono.


Fernando Palma

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